Paulo Faria

Página pessoal

 

A infância extingue-se no dia em que percebemos que os nossos pais nos sonegaram a parcela mais preciosa do seu afecto. Há um santo dos santos ao qual nunca poderemos aceder. Em contrapartida, temos livre acesso às caves e terrenos baldios onde saltimbancos obscenos se exibem, frenéticos. Sem o sabermos, acumulamos visões que nos irão perseguir para sempre. Houve um momento em que daríamos tudo por uma palavra, um gesto que nos resgatasse, nos pusesse no centro de uma periferia qualquer. A palavra nunca soa, o gesto não é esboçado, os pais estavam ocupados com uma refrega íntima, confusa, esgotante. Mais tarde, quando medra neles uma ternura frágil e comovente, recusamo-la com firmeza, como um mutilado de guerra a quem oferecessem uma esmola. Percorremos caminhos e veredas esconsas, as traseiras da vida, e observamo-los de longe, tentando compreender. De noite, o sono não vem. Repetimos abstenções e votos nulos, recusamos todas as causas, mesmo as perdidas. Os nossos colonizadores fugiram, apavorados com a sua obra, antes que fosse preciso combatê-los. Mesmo assim, não desmobilizamos as nossas tropas. Ateamos contrafogos e sufocamos com o fumo. A luta continua.

 

Gente acenando para alguém que foge (Minotauro), 2020

Paulo Faria

Author 03 Published Books

Nasci em Lisboa, em 1967. Licenciei-me em Biologia.
Tive a sorte de, muito jovem, me tornar tradutor literário. Já traduzi grandes escritoras (Jan Morris, Emily Brontë, Jane Austen, Katherine Anne Porter, Willa Cather e muitas outras) e grandes escritores (Cormac McCarthy, Don DeLillo, Jack Kerouac, George Orwell e muitos outros). Sempre que posso, viajo até às fontes das obras que traduzo para português.
Em 2015, venci o Grande Prémio de Tradução da Associação Portuguesa de Tradutores e da Sociedade Portuguesa de Autores pela minha tradução de História em duas cidades, de Charles Dickens.

Em 2022, recebi uma menção honrosa no Grande Prémio de Tradução da APT e da SPA pela minha tradução de Trieste, de Jan Morris.
Publico esporadicamente textos no jornal Público.
Com o meu segundo romance, Gente acenando para alguém que foge (Minotauro), venci o Prémio Autores 2021 da Sociedade Portuguesa de Autores: Melhor Livro de Ficção Narrativa.

Publiquei em 2024 o meu quarto romance: Louvado seja o pesadelo (Minotauro).

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