A infância extingue-se no dia em que percebemos que os nossos pais nos sonegaram a parcela mais preciosa do seu afecto. Há um santo dos santos ao qual nunca poderemos aceder. Em contrapartida, temos livre acesso às caves e terrenos baldios onde saltimbancos obscenos se exibem, frenéticos. Sem o sabermos, acumulamos visões que nos irão perseguir para sempre. Houve um momento em que daríamos tudo por uma palavra, um gesto que nos resgatasse, nos pusesse no centro de uma periferia qualquer. A palavra nunca soa, o gesto não é esboçado, os pais estavam ocupados com uma refrega íntima, confusa, esgotante. Mais tarde, quando medra neles uma ternura frágil e comovente, recusamo-la com firmeza, como um mutilado de guerra a quem oferecessem uma esmola. Percorremos caminhos e veredas esconsas, as traseiras da vida, e observamo-los de longe, tentando compreender. De noite, o sono não vem. Repetimos abstenções e votos nulos, recusamos todas as causas, mesmo as perdidas. Os nossos colonizadores fugiram, apavorados com a sua obra, antes que fosse preciso combatê-los. Mesmo assim, não desmobilizamos as nossas tropas. Ateamos contrafogos e sufocamos com o fumo. A luta continua.
Gente acenando para alguém que foge (Minotauro), 2020