Deixemos, pois, o espírito de Deus pairar sobre as águas que fazem as ilhas. Que descanse liberto e em paz, já que presas estão as ilhas e a paz não é um bem que perdure: esta é a lição que me trazem as memórias dos meus antepassados, falando-me de um não poder sair-se de uma terra que às vezes se revolta, em tremores de sentidos, e se desfaz e refaz sempre que das entranhas lhe regurgita a lava que um dia foi chão de trigo, e se desmoronou para deixar passar o fogo, e voltou a ser chão de colheitas – que a cada ano que passa chamamos novidades.
Esta paz é um bem que engana. Sei-o eu, no alto do Pico da Esperança, Ilha de São Jorge, nesta lavada manhã que até aqui me trouxe. Sei que os meus pés assentam no verde da pastagem, e que, se olhar em frente, é a mesma vertigem de azul que me arrasta para o mar, lá em baixo, e para o céu, lá em cima; e que, se me voltar para o lado oposto, é a mesma vertigem de azul que me arrasta para o mar e para o céu – como se este cume da montanha fosse um alto pedestal, e eu uma estátua vinda do nada que nele pousasse.
O silêncio é um grito que me abafa. Não há vento, nem árvores em que ele, se houvesse, tropeçasse, nem muros que o fizessem uivar, nem odores, ou pólenes ou maresias que por ele me chegassem. Aqui, sou eu e este silêncio, e o verde em que me apoio, e o azul em que me liberto, como se fosse eu uma garça preparando o voo. Aqui, sou eu e esta paz que engana, porque todo eu sou este preciso momento que nunca mais viverei.
Os meus olhos perscrutam o céu que me parece vazio, e pensam que se acaso algum deus existe, ele estará como eu no cimo de alguma das outras montanhas que daqui vejo, tão azuis, mas de um azul diferente, como o azul prateado do mar de onde emergem, ou do céu de anil claro para onde convergem. São ilhas, essas outras montanhas de um azul diverso em cujos cimos eu sei que há reflexos de deuses tão perdidos como eu: olho para Sudoeste, em frente, e é a montanha do Pico rematando a cordilheira da ilha que ali, naquele ponto, remata o mar; e, um pouco mais arredada a Oeste, vejo a suave caldeira que é o Faial, marcando também com o seu outro azul o seu posto no mar que, sendo o mesmo, é já de um azul diferente. Mas esta vertigem de azul torna-se em movimento e faz-me rodar sobre o eixo vertical e atónito que é o meu corpo emergindo do verde. É para Nordeste que agora me deslizam os olhos vazios de tanto olhar, e defronte de mim, no seu doce azul que ainda é outro, adivinho a Terceira com a serra que um dia foi uma alta montanha que explodiu e se desfez, e em cujas vertentes, já quase a rasar o mar, eu próprio fui gerado; e mais para Norte, quase perdida no mar que para além dela se vê, a Graciosa com os seus três montes que, de tanto a ter diante dos meus olhos de criança, sempre me serviu de modelo quando desenhava ilhas sonhadas nos meus cadernos da escola: três montes verdazulados amodorrados num azul transparente, de entre dois deles emergindo um enorme sol amarelo.
Esvaziam-se-me os olhos em lágrimas. Talvez sejam azuis, não sei, porque as não vejo, misturam-se-me no olhar, apenas as sinto escorrendo-me serenamente pelo rosto como esta paz em que paira o espírito de um Deus que sabe – tal como sempre souberam os meus antepassados, e sabem-no os deuses perdidos nas montanhas que me rodeiam – que não há nada mais enganador que esta paz de um mar de onde fluem os azuis que são as outras ilhas, aquelas que vejo, e o verde que é esta, onde me repousam os pés.
Um dia, amanhã talvez, tudo isto será tormenta.
(de As Fogueiras do Mar, 2022)